Evento promove diálogo Brasil-Portugal sobre reforma do direito das obrigações no Código Civil
"O direito civil é a base da sociedade: rege a vida das famílias, das empresas e dos negócios. É o ramo mais intrinsecamente ligado aos costumes da sociedade. Nesse sentido, estamos impregnados de história. A história portuguesa se confunde com a história brasileira ao longo dos séculos e formou as bases da nossa cultura."
Com essas palavras, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Isabel Gallotti abriu a palestra internacional A Reforma do Direito das Obrigações no Código Civil Brasileiro: Perspectiva Comparada, promovida pelo tribunal na manhã desta quarta-feira (12). O evento reuniu dois professores da Universidade de Lisboa, Dário Moura Vicente e Diogo Costa Gonçalves, para debater a proposta de atualização do direito das obrigações no Código Civil brasileiro, sob uma análise comparada com o direito civil português.

Reforma propõe ampliação do regime de ##responsabilidade civil## extracontratual
Em sua apresentação, o professor Dário Moura Vicente abordou o tema da responsabilidade civil extracontratual no contexto da reforma do Código Civil brasileiro (Projeto de Lei 4/2025), sob a ótica do direito comparado. Segundo ele, a proposta não se limita a uma atualização técnica, mas representa uma verdadeira reconfiguração conceitual do direito civil, ao buscar adequar a legislação às transformações sociais, tecnológicas e econômicas do século XXI. O professor ressaltou que a responsabilidade civil funciona como um "sismógrafo" do sistema jurídico, refletindo a forma como cada sociedade equilibra liberdade individual e proteção dos bens jurídicos.
Vicente observou que esses valores se tornam ainda mais complexos diante de dois fatores centrais da contemporaneidade: a evolução tecnológica, especialmente no ambiente digital, e a globalização econômica, que intensifica as interações entre diferentes sistemas jurídicos. Assim, o debate sobre responsabilidade civil, segundo ele, ultrapassou fronteiras nacionais e se tornou essencial para a economia global, exigindo soluções que conciliem a proteção das vítimas com a viabilidade das atividades econômicas legítimas.
No plano comparado, o expositor explicou que existem três modelos estruturais de responsabilidade civil: o sistema da ##tipicidade##, típico da Common Law, que reconhece apenas os fatos definidos como torts; o sistema da cláusula geral, adotado em países como França, Itália e Argentina, que impõe um dever amplo de não causar dano; e o sistema intermediário, seguido por Alemanha e Portugal, que busca equilibrar segurança jurídica e flexibilidade. "Eu diria que a técnica legislativa atualmente utilizada no direito brasileiro, no código tal como se encontra em vigor, não difere substancialmente dos sistemas intermédios europeus que acabei de referir", afirmou.
Nesse contexto, Vicente apontou que o projeto da reforma do Código Civil propõe a ampliação do regime de responsabilidade civil extracontratual, deslocando-o de uma função exclusivamente reparatória para também prevenir e punir condutas lesivas. A proposta prevê o aumento da responsabilidade objetiva pelo risco, a criação de um dever geral de evitar danos e maior discricionariedade aos tribunais para fixação do dano indenizável.
"A reforma não é propriamente inédita em relação aos demais sistemas jurídicos em nenhum desses aspectos individualmente considerados. A particularidade da reforma brasileira está mais no alcance amplo dessas inovações e na extensão com que podem ser aplicadas. Creio que, em última análise, o impacto da reforma dependerá do modo como o STJ a interpretará em sua práxis", realçou.
Função social do contrato ganha caráter invalidante na proposta de reforma do código
O professor Diogo Costa Gonçalves, por sua vez, tratou da função social do contrato e de seu papel na reforma do código civil brasileiro, destacando que o ponto central da proposta está no caráter invalidante atribuído à função social. Ele esclareceu que, pela nova redação, a função social passa a ser reconhecida como requisito de validade e eficácia. Essa mudança, segundo o professor, representa uma revalorização da função social como princípio estruturante do direito contratual brasileiro, reafirmando o equilíbrio entre autonomia privada, interesse social e dignidade da pessoa humana.
Gonçalves salientou que o projeto incorpora dispositivos que evidenciam essa nova perspectiva, entre eles o artigo 475-A, inciso IV, que permite a manutenção do contrato mesmo diante do inadimplemento, quando sua conservação atender ao interesse social ou econômico, e o artigo 609-F, que estabelece padrões éticos e de boa-fé para prestadores de serviços digitais que utilizam inteligência artificial.
Essas inovações, de acordo com o professor, revelam o caráter polissêmico e multifuncional da função social, que se manifesta em três dimensões principais: como princípio, que orienta a justiça material dos casos concretos; como fim tipológico, relacionado à natureza socioeconômica dos tipos contratuais; e como fim contratual, vinculado à finalidade prática do negócio celebrado entre as partes.
"A função social do contrato, tendencialmente, torna-se fonte de normas de conduta, porque o princípio não é passível de violação positiva por uma cláusula contratual. O princípio não é uma norma de validade, mas, por regra, é fonte de deveres de conduta, de modo semelhante ao que ocorre com o princípio da boa-fé objetiva", concluiu.
Veja mais fotos no Flickr do STJ.
Clique na imagem para assistir à integra do evento: